Você sabe quem é o casal que adorna o flyer da mostra Recreio Ideal, a qual integra a programação pelo aniversário de dez anos do Núcleo de Especiais da RBS TV? Não?
Seus nomes são Francisco Damasceno Ferreira e Emma Augusta Barth Besseler. Francisco foi proprietário da primeira sala de cinema com programação fixa em Porto Alegre. A foto de ambos também está na exposição sensorial de percurso Viagem ao Centro da Luz, que poderá ser visitada no CCCEV até 31 de março. Saiba mais sobre eles:
Do final do século XIX ao princípio do XX, as sessões de cinema em Porto Alegre eram realizadas por cinematógrafos ambulantes, geralmente trazidos por empresários em suas viagens pelo mundo. Entre os anos de 1908 e 1910 foram inauguradas cerca de dez salas de cinema na Capital do Estado, as quais trocavam de proprietários com freqüência. Fundado em 1907 por Eduardo Hirtz, o Cine Recreio Ideal, primeira sala fixa da cidade, fora reinaugurado em 1911, após uma série de reformas, com novo proprietário: o advogado Francisco Damasceno Ferreira (1875-1953), um dos visionários empresários da época que apostaram na promissora Sétima Arte. Proprietário da Damasceno Ferreira & Cia. e representante da Cia. Cinematográfica Brasileira, Francisco foi o responsável pela primeira sala de cinema com programação fixa, já em 1908, e detinha uma série de salas na cidade, a exemplo do Cine Avenida, localizado à Rua da Ladeira e inaugurado com o filme Quo Vadis.
No jornal A Federação, de 3 de fevereiro de 1911, foi publicada uma notícia sobre o local: “Ao transpol-o [o novo salão], sente-se como que um doce encanto que nos enleva a alma, transportando-nos a um mundo ideal (…) [o] declive [das poltronas] permitte ao publico apreciar sem constrangimento as fitas exibidas. (…) Ar e luz, esses dois elementos essenciaes á vida, lá se encontram em abundancia. A sala de espera também está decorada com apuro e arte, apresentando bellos panoramas da bahia do Rio de Janeiro. (…) A fachada foi embellesada com um magnifico alpendre de crystal, que, á noite, produz bonito effeito com suas luzes de variegadas cores”.
Nesta época, o público já fazia valer seu direito de consumidor. Com o pseudônimo de “Amigo d’O Diario”, um leitor enviou uma carta para o jornal A Federação, em 19 de junho de 1912, na qual reclamava dos ventiladores na sala Recreio Ideal. “Ilustrada redaçcão d’O Diario. É sabido que a melhor ou peor nitidez das fitas depende muito do lugar que os frequentadores de cinema tomam no salão: e, por isso, todos procuram occupar a fila de poltronas que mais garantia de visão e nitidez lhes ofereça. Mas no vasto salão do concorridíssimo ‘Ideal’ não é muito fácil essa escolha, porque, depois de, a muito custo, vencido o embaraço dos chapéos das nossas elegantes patrícias, esbarra o espectador ainda com o não menos impertinente e irrirante obstaculo dos enormes ventiladores que, impiedosamente, se oppoem á sua vista. Ora, como nenhum prejuízo possa advir da remoção desses ventiladores ou pelo menos, do primeiro que nos defronta a entrar no salão, vimos por vosso intermedio, solicital-a aos operosos proprietarios do ‘Ideal’, para que melhormente possamos apreciar as surpreendentes fitas que, quotidianamente nelle fazem exibir”. A indignada carta fez com que os aparelhos fossem imediatamente retirados do salão.
A partir de 1911, a Damaceno Ferreira & Cia. transformou-se no maior complexo de exibição do Estado, com salas até mesmo no interior, em Pelotas, Caxias do Sul, Bagé, Santa Maria, Rio Grande e Rio Pardo e distribuição de filmes, o que gerou descontentamento por parte dos concorrentes. Em Porto Alegre, além do Recreio Ideal e do Cine Avenida, Francisco também era o proprietário da sala Força e Luz – coincidência ou não homônimo do prédio que atualmente abriga o CCCEV e o Museu de Eletricidade do Rio Grande do Sul (Mergs). Um dado curioso é que o seu escritório de advocacia estava situado ao lado do Clube dos Caçadores, na Rua Nova (atual Andrade Neves). Neste período de cinema mudo, quando os artistas mais famosos da época eram Theda Bara, ícone da beleza vamp, Bela Hisperia e Tulio Carminatti, Damasceno inovou ao instituir a meia entrada para estudantes, fato que lhe grangeou uma estrondosa manifestação da classe. Por conta da meia entrada, era carregado nos braços pelos estudantes e, não raro, saía pelas ruas distribuindo dinheiro à esmo. Àvido por novidades empreendedoras, fez com que o cinema também marcasse presença em festas populares. Em 1913, na Festa do Divino, foram realizadas exibições de cinema na Praça da Matriz especialmente para o evento. A Damasceno Ferreira & Cia. cedeu o projetor e as fitas para a celebração.
Conhecido como Chico Damasceno, detinha grande popularidade na Capital, conforme atesta o escritor Nilo Ruschel, em seu livro Rua da Praia, de 1971: “Bonitão e elegante, ele fazia figura na Rua da Praia, com seu linho branco, bigodes a Kaiser. Tinha um carro, com uma parelha de cavalos vindos da Argentina, que ele fazia desfilar pela rua por perto dele. Quando cansava de caminhar, embarcava no carro e tocava adiante. Foi dono de um dos primeiros automóveis que Porto Alegre conheceu. Carlos Cavaco era seu publicista e tinha o encargo de escrever o resumo da fita, para ser distribuído à entrada do cinema. (…) Francisco Damasceno Ferreira que, por causa do cinema, tivera que abandonar os estudos, reingressou na Faculdade em 1917, formando-se no ano seguinte”.
Os êxitos de Damasceno não se confirmaram somente no meio cinematográfico. Como advogado, montou banca com Pereira da Cunha e celebrizou-se com a questão Quaresma, em que levantou, pela primeira vez, a investigação de paternidade, saindo vitorioso em todas as instâncias. O caso de sua cliente, Anna Maria Quaresma mobilizou a opinião pública da época e foi destaque na Revista Máscara, de janeiro de 1925. “O advogado de Anna Maria Quaresma, na importantíssima causa de Investigação de Paternidade, cumulada com Petição de Herança, que pelo Juízo do Cível está a mover contra Antonio Alves do Valle Quaresma, universal herdeiro do milionario Manoel Alves do Valle Quaresma Junior, pretendido pae da Autora (…)”.
Filha de imigrantes alemães originários de Halle, na antiga Prússia (atualmente Estado de Sachsen-Anhalt), Emma Augusta Barth Besseler (1897-1994) trabalhava como pianista nas sessões de cinema noturnas do Cine Recreio Ideal - então denominadas soirées – que ocorriam sempre às 18h30min e às 21h30min. O ofício foi praticamente extinto com o advento do cinema sonoro, porém era fundamental à época do cinema mudo e legendado, quando a música interpretada ao vivo pelos pianistas equiparava-se, em grau de importância, às imagens dos filmes, já que os pianistas propiciavam emotividade às cenas e ainda distraíam a audiência. As sessões noturnas do Cine Recreio Ideal eram ainda entremeadas por apresentações de orquestras, cantores e teatro de revista. Além do emprego no Recreio Ideal, Emma Augusta trabalhava durante o dia na Livraria do Globo como tradutora de alemão e inglês e já aos 15 anos dava aulas particulares de piano (Egídio Michaelsen e Antônio Jacob Renner foram alguns de seus alunos). A pianista veio a se tornar a segunda esposa de Francisco Damasceno Ferreira, então proprietário deste cinema.
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